“Parece-me impossível imaginar para a Europa um renascimento que não leve em conta as exigências que Simone Weil definiu.” Albert Camus
Uma das mulheres mais notáveis do último século, Simone de Beavoir, relembra com as seguintes palavras outra figura marcante do pensamento francês no século XX:
“Simone Weil me intrigava por causa de sua grande reputação de inteligência e seu modo extravagante de vestir-se. Uma grande fome acabara de devastar a China e me haviam contado que ao ouvir essa notícia ela tinha soluçado: essas lágrimas forçaram meu respeito ainda mais que seus dons filosóficos. Eu admirei um coração capaz de bater através do universo inteiro. Consegui um dia conversar com ela – e ela declarou num tom cortante que só uma coisa importava hoje sobre a terra: a Revolução que daria de comer a todo mundo.”
Além de Camus e Beavouir, muitos outros reconheceram em Simone Weil uma extraordinária aparição humana que, em tempos de cólera, surge para auxiliar no desabrochar da doçura, da serenidade, da lucidez, da coragem. José Paulo Paes, nosso brilhante poeta e ensaísta que chegou a escrever lindos versos de inspiração weiliana – “a posse é-me aventura sem sentido: só compreendo o pão se dividido” -, também pinta um retrato admirativo de Weil:
“Morta prematuramente aos 34, essa parisiense de físico frágil mas de inquebrável tenacidade de espírito foi uma figura humana fora do comum. Militante de esquerda, pensadora política, professora de filosofia, ela sempre se recusou ao institucionalizado e ao tacitamente aceito, fosse em que domínio fosse. Para poder analisar a condição operária e a opressão social, não se contentou em ler Marx, mas cuidou de fazer o que ele jamais fizera: trabalhar na linha de montagem de uma fábrica. Não se deixou obnubilar pela ortodoxia partidária: criticou abertamente o estalinismo e chegou a polemizar com Trótski.” (J.P. PAES)
Desde a mais tenra infância, a pequenina Simone já apresentava os primeiros sintomas do que mais tarde se tornaria um entusiasmo político tão efervescente que ela estaria pronta a saltar de pára-quedas em Praga, para ajudar os revolucionários, ou unir-se na Espanha às tropas que batalhavam contra o fascismo de Franco durante a Guerra Civil de 1936-39. Como relata Ecléa Bosi, a pequenina Simone, “travessa e indomável”, desde muito cedo manifestava ceticismo e desagrado diante das burguesices:
“Ao ganhar um anel de presente, com três anos, faz todos rirem com sua resposta: ‘O luxo não me agrada!’ […] Com vestidos novos fica encantadora mas desgostosa; queria que todos se vestissem iguais e com roupas baratas. […] Sua fotografia aos sete anos nos mostra uma fisionomia corajosa, paciente, o olhar de uma seriedade rara para a idade e de tão impressionante nobreza que, ainda que nada conhecêssemos dela senão esse retrato, nunca a esqueceríamos. Já são evidentes nesse rosto dois traços que vão permanecer: atenção ao mundo e vontade inquebrantável.” (ECLÉA BOSI)
“Ainda que nada conhecêssemos dela senão esse retrato, nunca a esqueceríamos.”
Um episódio é exemplar da força, da audácia, do magnetismo desta figura fora-de-série:
“Em 1933, o presidente da república, Albert Lebrun, vem inaugurar um monumento em Saint-Etienne. Os sindicatos resolvem protestar num comício. A polícia de Paris intervém, militantes são presos e espancados. No dia seguinte, durante as cerimônias oficiais, os trabalhadores protestam numa rua próxima. Simone é içada numa janela pelos seus camaradas, que a protegem enquanto cantam a Internacional Comunista. Ela discursa contra a situação da Indochina (colônia francesa) e chama o presidente de lacaio dos fabricantes de canhões.
Mal se ouvem suas palavras encobertas pela banda militar que saúda as autoridades. […] Em dezembro do mesmo ano de 1933, em protesto contra os baixos salários e o desemprego, os mineiros organizam uma grande marcha. Desde seus míseros casebres até a prefeitura, milhares de mineiros marcham ruflando tambores e soando clarins. Todos cantam. Simone conduz à frente do cortejo a grande bandeira vermelha.” (Ecléa Bosi)
Na sequência, compartilhamos uma coletânea de pensamentos e reflexões de Simone Weil, todos eles retirados da excelente obra A Condição Operária e Outros Estudos Sobre a Opressão, lançado pela Editora Paz e Terra e adquirível por R$43,00 (novo) ou usado na Estante Virtual. É um convite para que mais gente sinta-se entusiasmada a conhecer mais da vida e da obra desta criatura humana extraordinária.
O DESENRAIZAMENTO
“O amor pelo passado não tem nada a ver com uma orientação política reacionária. Como todas as atividades humanas, a Revolução extrai toda a seiva de uma tradição. Marx o sentiu tão bem que fez questão de buscar a origem dessa tradição nas mais longínquas idades fazendo da luta de classes o único princípio de explicação histórica. (…) A oposição entre o passado e o futuro é absurda. (…) Seria inútil desviar-se do passado para não pensar senão no futuro. O futuro não nos traz nada, não nos dá nada; somos nós que para o construir devemos dar-lhe tudo, dar-lhe nossa própria vida. Mas para dar é preciso possuir, e não possuímos outra vida, outra seiva, senão os tesouros herdados do passado e digeridos, assimilados, recriados por nós. De todas as necessidades da alma humana, não há nenhuma mais vital do que o passado. (…) A perda do passado, coletivo ou individual, é a grande tragédia humana, e nós jogamos fora o nosso como uma criança desfolha uma rosa. É antes de tudo para evitar essa perda que os povos resistem desesperadamente à conquista.”
“O pensamento da fraqueza pode inflamar o amor assim como o da força, mas é de uma chama muito mais pura. A compaixão pela fragilidade está sempre vinculada ao amor pela verdadeira beleza, porque sentimos vivamente que as coisas verdadeiramente belas deveriam ter assegurada sua existência eterna e não a têm.” (Ed. Edusc, pg. 111 e 158)
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A CONDIÇÃO OPERÁRIA
“São raros os momentos do dia em que o coração não está um pouco comprimido por alguma angústia. De manhã, a angústia do dia a se viver. Quem saiu em cima da hora tem medo do relógio de ponto. No trabalho, o medo de não estar na velocidade boa. O medo das broncas. Muitos sofrimentos são aceitos só para evitar uma bronca.
É só queixar-se de um trabalho pesado demais ou de uma cadência impossível de acompanhar, que brutalmente vem lembrar-lhe que se está ocupando um lugar que centenas de desempregados aceitariam de boa vontade. Corre-se o risco de ser posto pra fora. É preciso serrar os dentes. Aguentar-se. Como um nadador na água. Só que com a perspectiva de nadar sempre, até a morte. E nenhuma barca que nos possa recolher. Se a gente afunda lentamente, se soçobra, ninguém no mundo dará por isso. O que é que a gente é? Uma unidade na força de trabalho. A gente não conta. Mal existe.
A cada momento estamos na contingência de receber uma ordem. A gente é uma coisa entregue à vontade de outro. Que vontade de poder largar a alma no cartão de entrada e só retomá-la à saída! Mas não é possível. A alma vai com a gente para a oficina. É preciso o tempo todo fazê-la calar-se. Na saída, mitas vezes não a temos mais, porque estamos cansados em excesso. Se a gente se sujeita é, como diz Homero falando dos escravos, ‘bem a contragosto, sob a pressão de uma dura necessidade’.”
(Em “A Condição Operária e outros Estudos sobre a Opressão”, pg. 124-125)
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REFLEXÕES SOBRE A GUERRA E O COLONIALISMO (1933)
“A engrenagem monstruosa da sociedade atual parece-se com uma máquina imensa que está tragando continuamente os homens, e cujos comandos ninguém conhece; e os que se sacrificam pelo progresso social se parecem com pessoas que se agarram aos rolamentos e às correias de transmissão para tentar deter a máquina, fazendo-se moer por sua vez. (…) Em qualquer circunstância, a pior traição possível é sempre aceitar a subordinação a esse aparelho e pisar, para servi-lo, em si mesmo e nos outros, todos os valores humanos.” (pg. 218)
“A tentação cristã: sendo a colonização um meio favorável para as missões, os cristãos se sentem tentados a amá-la por isso, mesmo reconhecendo-lhe as taras. Ora, mas uma questão que mereceria exame detido é: um hindu, um budista ou um muçulmano, ou qualquer um dos que são chamados de pagãos, não possuem em sua própria tradição um caminho para a espiritualidade, diferente do que as igrejas cristãs propõem? Em todo caso, Cristo nunca disse que os navios de guerra devessem acompanhar, mesmo de longe, os que anunciam a boa nova. (…) Só os sacerdotes podem medir o valor de uma idea pela quantidade de sangue que ela fez derramar.
Com a colonização da África negra, os brancos causaram todos os danos possíveis durante 4 séculos com suas armas de fogo e seu comércio de escravos. (…) Privando os povos de sua tradição, de seu passado, a colonização os reduz ao estado de matéria humana.” (pgs. 227-231)
“Que idiotas espalharam o boato de que as idéias não podem ser mortas pela força bruta? (…) Nada mais cruel em relação ao passado do que o lugar-comum segundo o qual a força é impotente para destruir os valores espirituais; em nome dessa opinião nega-se que as civilizações apagadas pela violência das armas tenham um dia existido; isso é possível porque não se teme o desmentido dos mortos. Assim se mata pela segunda vez o que pereceu e nos associamos com a crueldade das armas. A piedade ordena que nos apeguemos aos traços, mesmo raros, das civilizações destruídas.” (Pgs. 243 e 276)
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OPRESSÃO E LIBERDADE
“Nada neste mundo pode impedir o homem de se sentir nascido para a liberdade. Nunca, aconteça o que acontecer, ele pode aceitar a servidão. Nunca deixou de sonhar com uma liberdade sem limites, seja como uma felicidade passada da qual um castigo o teria privado, seja como uma felicidade vindoura que lhe seria devida por uma espécie de pacto com uma providência misteriosa. O comunismo imaginado por Marx é a mais recente forma desse sonho. Já é tempo de renunciar a sonhar com a liberdade e de se decidir a concebê-la.
Uma visão clara do possível e do impossível, do fácil e do difícil, das dificuldades que separam o projeto da realização, faz, sozinha, desaparecerem os desejos insaciáveis e os medos vãos; é daí, e não de nenhuma outra fonte, que procedem a temperança e a coragem, virtudes sem as quais a vida é apenas um vergonhoso delírio. Além disso, toda espécie de virtude tem a sua fonte no encontro que faz o pensamento em seu embate com uma matéria sem indulgência nem perfídia. Não se pode imaginar nada maior para o homem do que um destino que o coloque diretamente no embate com a necessidade nua, sem que tenha nada a esperar senão de si mesmo, e de tal forma que a sua vida seja uma perpétua criação de si mesmo por si mesmo. Vivemos num mundo no qual o homem deve esperar milagres apenas de si mesmo.”
(Pgs. 326- 331)
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“Morta prematuramente aos 34 anos de idade, essa parisiense de físico frágil mas de inquebrável tenacidade de espírito foi uma figura humana fora do comum. Militante de esquerda, pensadora política, professora de filosofia, SIMONE WEIL (1909 – 1943) sempre se recusou ao institucionalizado e ao tacitamente aceito, fosse em que domínio fosse.
Para poder analisar a condição operária e a opressão social, não se contentou em ler Marx, mas cuidou de fazer o que ele jamais fizera: trabalhar na linha de montagem de uma fábrica. Embora tivesse participado ativamente das lutas sociais e antifascistas na França pré-Guerra, não se deixou obnubilar pela ortodoxia partidária: criticou abertamente o estalinismo e chegou a polemizar com Trotski. Suas iluminações místicas não a levaram nunca a aceitar o sacramento do batismo, pelo que foi tida como herética.
Cabe a Ecléa Bosi o mérito de ter introduzido no Brasil o pensamento por todos os títulos instigante e enriquecedor de Simone Weil através de uma bem organizada coletânea dos seus principais escritos políticos, literários e religiosos; com o título de A Condição Operária e outros estudos sobre a opressão, essa coletânea foi publicada em 1979 pela editora Paz e Terra, do Rio.
Entre os textos recolhidos neste livro (capa acima) figura A Ilíada ou O Poema da Força, um estudo realmente luminoso pelas reflexões que propõe e que debate. A obra de Homero já suscitou uma imensa quantidade de obras de erudição, no entanto nenhuma é mencionada por Simone Weil. Não porque as desconhecesse mas porque, imagino eu, elas não vinham ao caso para o seu enfoque de leitura. Diante do poema de Homero, Simone Weil não se deixou intimidar pela multissecular erudição a que ele deu origem e enfrentou-o em estado de inocência, por assim dizer, de candidez de espírito. Deixou-se impregnar por ele, em vez de se extraviar por suas glosas ou interpretações.
Esse contato direto é responsável pela força de persuasão do luminoso estudo de Simone Weil. Logo no começo ela diz que a Ilíada pode ser considerada sob dois pontos de vista: como documento de um passado irremediavelmente passado, ou como espelho de circunstâncias e pulsões ainda hoje presentes na história humana. Nisto, ela confirma de certo modo uma visão de Marx a respeito da perenidade da arte grega.
Na Crítica da Economia Política, Marx se perguntava por que, estando tão distantes de nós no tempo as condições históricas que acompanharam o nascimento da arte grega, esta ainda é tida como um padrão de excelência. A resposta dada por Marx é a de que o adulto sempre tem nostalgia da infância e é capaz de revivê-la pela imaginação. Os gregos, pelo esplendor de sua cultura, teriam representado, na história da humanidade, uma espécie de infância de ouro a que todos gostaríamos de remontar.
Ao debruçar-se sobre a Ilíada com a sua retidão de criança – para usar uma frase feliz de Ecléa Bosi acerca de Simone Weil -, esta como que assumia, pois, o mesmo espírito auroral da cultura grega. Sua candidez de visão tinha outrossim algo a ver com o espírito dos Evangelhos: não disse o Cristo “Se não vos fizerdes como meninos, de modo algum entrareis no reino dos céus?”
Um aspecto fundamental de Ilíada ou Poema da Força, de S. Weil, é o de configurar uma visão retrospectiva do poema de Homero. Retrospectiva no sentido de que ele é ali considerado pela ótica dos Evangelhos, tidos pela própria Simone Weil como a última grande manifestação do gênio grego. (…) A Ilíada tem sabidamente como fontes básicas de interesse o tema da guerra e o tema do debate, vale dizer, as lutas de corpos e as lutas de espíritos.
As cenas de batalha, em cuja descrição brilha a arte do poeta, revelam, de sua parte, um surpreendente conhecimento da técnica militar. Tal ênfase no bélico não é de se estranhar quando se pensa no tipo de audiência para a qual os aedos costumavam recitar as estrofes da Ilíada: uma audiência aristocrática que tinha na guerra uma de suas ocupações preferidas.
Mostra Simone Weil que, por sob os episódios guerreiros – momentos em que é dado ao homem pôr à prova sua força física, sua coragem moral e sua destreza nas armas – há um empenho constante de mostrar o avesso da guerra, “tudo o que está ausente da guerra, tudo o que a guerra destrói ou ameaça.” Ela acentua que “na Ilíada, a fria brutalidade dos fatos de guerra não é disfarçada com nada, porque nem vencedores nem vencidos são desprezados ou odiados.” Uns e outros são vítimas do mesmo processo de desumanização que Simone Weil vê como o objetivo último da guerra.
A guerra transforma os homens em coisas, a matéria viva em matéria inerte. A morte é a própria sombra do soldado, a acompanhá-lo o tempo todo. Se para o comum dos homens, nas épocas de paz, a morte é o limite mais ou menos distante de um futuro, para o combatente ou para a vítima civil é o horizonte ameaçadoramente próximo, que os converte em pré-mortos, mortos em vida. Donde o poder coisificador da guerra, a manifestação mais catastrófica e mais teatral da violência…
O fato de a violência desumanizar, ou seja, alienar de si mesmos seus praticantes e suas vítimas, faz com que ela lhes pareça algo exterior, uma manifestação do destino. Mostra Simone Weil que, embriagado pela própria força, o guerreiro julga iludidamente que tudo lhe é permitido, pelo que acaba sendo atingido pelas consequências de seu abuso. É Nêmesis, a punidora do orgulho humano, o qual provoca a inveja dos deuses, e do excesso, que perturba o equilíbrio do universo.”
José Paulo Paes
Prefácio de “A Condição Operária”, de Simone Weil.
Ed. Paz e Terra, Rio.
Acima: dois quadros de Giovanni Battista Tiepolo (1696 – 1770) representando a entrada em Tróia do Cavalo, repleto de soldados gregos escondidos em seu bojo, e a crucificação do profeta hebreu Jesus Cristo
Publicado em: 22/04/18
De autoria: Eduardo Carli de Moraes
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marielfernandes
Comentou em 13/07/15